A MINORIA ÉTNICA ROHINGYA
- Prof. Éder Israel
O povo Rohingya
representa na atualidade o maior grupo étnico de deslocados no mundo
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em: <https://www.vaticannews.va/content/dam/vaticannews/agenzie/images/reuters/2019/08/23/03/1566522471965.JPG>
acesso em 21 mar. 2021
No
estágio contemporâneo da globalização ao mesmo tempo em que criam condições
vantajosas para o desenvolvimento econômico das sociedades, através da
ampliação dos fluxos e das interações, produz também situações sociais muito
negativas, em decorrência de choques culturais e interações conflituosas entre
grupos distintos, até pouco tempo “desconectados”. Desse modo, na mesma medida
em que os fluxos de mercadorias e informações são ampliados, ocorre também o
aumento dos deslocamentos humanos, tanto aqueles considerados espontâneos, como
os turistas e trabalhadores, quanto aqueles tidos como forçados, como os
deslocados e refugiados. Os Rohingyas se inserem nesse segundo grupo.
A
relação intrínseca entre o processo de globalização e o sistema capitalista
promove conflitos de interesses econômicos entre os grupos envolvidos nas interações
sociais, e quando os objetivos de acumulação financeira e de domínio territorial
estratégico se chocam, as disputas podem promover desde instabilidades
diplomáticas até mesmo atos de massacres e limpezas étnicas. A questão Rohingya
se encaixa perfeitamente nessa segunda perspectiva.
Assim
como se observou até a metade do século XX em relação aos Judeus ou se observa
na atualidade em relação aos Curdos, os Rohingyas configuram-se hoje como um povo
dotado de valores étnicos e culturais, porém desprovido de um território
nacional. Desse modo, habitam há muito tempo espaços pertencentes a outros
grupos étnicos, e diferentemente do que se observou no passado, essa
coexistência no presente tem promovido crescentes choques culturais e disputas
de interesses, e automaticamente potencializado disputas étnicas e conflitos
sociais. A maior parte dessas disputas envolvendo esse grupo ocorre atualmente no
território de Myanmar, onde vive (ou tenta sobreviver) a maioria dessa etnia
sem nação.
Em Myanmar o povo
Rohingya se concentra no estado de Rakhine, próximo a Bangladesh
Disponível
em: <https://static.dw.com/image/40521460_105.png> acesso em 21 mar. 2021
A
origem do povo Rohingya ainda é imprecisa. Segundo uma linha de pesquisa eles
seriam originários do próprio estado de Rakhine, em Myanmar, ao passo que para
uma segunda linha eles seriam oriundos da Birmânia (hoje Bangladesh), tendo
migrado no passado para o território mianmarense. O que se sabe de fato é que
se trata de um grupo étnico que professa a fé islâmica e que não é reconhecido,
enquanto nação, pelo governo desse país, o que coloca os Rohingyas na situação
de povo apátrida, uma vez que não possui participação política ou econômica ao
espaço em que se inserem, bem como é marginalizado de suas esferas sociais, e essa
situação de apatridia agrava ainda mais a já precária situação de vida dessa minoria.
Nos
últimos anos os conflitos étnicos de cunho religioso se ampliaram entre a
população predominantemente budista de Myanmar e os muçulmanos Rohingyas que
habitam no extremo Oeste do país. Porém, além das divergências étnico-religiosas,
interesses econômicos e políticos por parte do Estado mianmarense acentuaram as
disputas nacionais, ao ponto de diversas instituições supranacionais, e a
própria Organização das Nações Unidas – ONU terem considerado esse povo como
sendo a minoria étnica mais perseguida no mundo atualmente.
Em
termos numéricos a população Rohingya em Mianmar é estimada em cerca de 3
milhões de pessoas, o que significa 5% da população total daquela nação, a qual
conta com pelo menos 160 etnias diferentes em seu território, a maioria aceita
e acolhida pelo Estado. Essa nação asiática passou na segunda metade do século
XX por sucessivos períodos de instabilidade política, golpes militares e
regimes ditatoriais, que em comum tiveram sempre as ações veementemente contra o
reconhecimento e tolerância aos Rohingyas, sempre marginalizados e excluídos.
Porém, naquele período (1950 – 1990) na medida em que havia a perseguição por
parte do Estado Nacional, a população minoritária migrava dentro do próprio
território mianmarense. Diferentemente do que se passou a observar a partir do
início do século XXI, quando a fuga desse povo se deu na direção de outras
nações da região.
No
período entre 2016 e 2017 observou-se com maior intensidade tanto a perseguição
quanto a fuga em massa de populações Rohingyas, principalmente em direção a
Bangladesh, país vizinho a Myanmar, onde que a população é de maioria islâmica.
Porém, Bangladesh já atravessa severos problemas internos, em decorrência de
sua população numerosa e a falta de capitais para investimentos públicos sociais,
o que leva sua população nativa a viver em precárias condições de vida e o
Estado a ser incapaz de arcar com os elevados custos de manutenção e ajuda
humanitária para a população deslocada do país vizinho. Assim, embora em
relativa segurança, os refugiados que se deslocam para Bangladesh permanecem em
situação de exclusão social, pois muitas vezes não gozam das já mínimas
condições oferecidas às populações daquele país.
O campo de refugiados de
Cox Bazar, em Bangladesh, é atualmente o maior no mundo
Disponível
em: <http://jeepneyjinggoy.com/wp-content/uploads/2019/05/City-like-refugee-camp-photo-by-Kim-Sanggoo.jpg>
acesso em 21 mar. 2021
Diante
da incapacidade financeira e operacional do Estado bangladês, a ONU, através do
Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, estabeleceu na
cidade de Cox Bazar o campo de refugiados homônimo, que abriga segundo a
instituição aproximadamente 1 milhão de pessoas, em sua quase totalidade
deslocadas de Myanmar a partir de 2016, quando se intensificaram no país a perseguição
dos islâmicos pelos budistas. Mesmo expostas a condições extremamente
precárias, principalmente relativas a saneamento básico, as populações
refugiadas que habitam os campos encontram-se em relativa seguridade e
amparadas pelos termos e dispositivos legais firmados a partir da Convenção de
Genebra.
Ao
longo dos últimos anos o campo de refugiados tem recebido crescentes somas de
Rohingyas, principalmente pelo agravamento das tensões políticas entre os militares
e o governo democrático estabelecido em Myanmar, o que amplia a quantidade de
indivíduos apátridas que dependem da ajuda humanitária, custeada pela ONU e por
organismos internacionais, bem como por doações de todo o mundo. Porém, trata-se
apenas de uma solução temporária e paliativa, que não resolve de fato o
problema dessa minoria étnica desprovida de um espaço nacional. Uma medida que
poderia surtir resultado mais efetivo seria a delimitação e o estabelecimento de
“um país Rohingya”, porém essa proposta esbarra em uma série de entraves
diplomático, posto que alguma outra nação deveria abrir mão de uma parte de seu
território para que essa nova nação fosse criada. E, assim como acontece com a
questão curda no Oriente Médio, há dificuldades colossais para que tal medida
seja efetivada.
A
situação dessa minoria étnica passou por severo agravamento a partir de 2019,
por duas variáveis diferentes que impactaram de maneiras igualmente devastadoras
sobre esse povo: Primeiramente a pandemia do novo Coronavírus, que atingiu de
modo alarmante o campo de Cox Bazar, onde as condições de saneamento são
extremamente precárias e o distanciamento social se faz quase impossível, em
decorrência da enorme população habitante e da insalubridade das moradias. E em
segundo lugar, um golpe de Estado realizado pelos militares em Myanmar, que
derrubou em fevereiro de 2021 o governo da Liga Nacional pela Democracia – LND,
sob a liderança de Aung San Suu Kyi. Ambos os eventos tornaram ainda mais precária
e ameaçadora a situação desse povo.
No
caso do surto do Coronavírus dentro do campo de refugiados, onde vive cerca de
1 milhão de pessoas em sua maioria crianças, a doença se espalhou
assintomática, rápida e silenciosamente, atingindo números elevados de
infecções, segundo estimativas extraoficiais dos organismos internacionais, posto
que dificilmente existam dados totalmente oficiais dadas as dificuldades
clínicas de realização de testes, e o intenso fluxo diário de entrada de novos
refugiados, provenientes das nações circunvizinhas. Assim como as condições de
testagens são insuficientes para a população do campo de refugiados, as instalações
médicas de tratamento, como leitos de UTI e equipamentos de ventilação forçada
são certamente inadequadas frente a um possível (e possivelmente inevitável) surto
da doença. O que será certamente uma demanda a mais para os já sobrecarregados
voluntários que operam essa estrutura humanitária.
No
caso do golpe de Estado ocorrido em Myanmar no início de 2021 a perseguição aos
Rohingyas, que já existia de maneira evidente sob o governo da LND, tende a se
tornar ainda mais implacável, em decorrência do autoritarismo político a ser
empregado pelos militares que tomaram o poder, os quais justificarão suas
políticas de segregação e combate às minorias étnicas com um discurso de
suposta defesa do nacionalismo. Desse modo certamente haverá ainda mais êxodo
desse povo, principalmente em direção ao já superlotado campo de refugiados em
Bangladesh. Em resumo, a situação que já é notadamente de tragédia humanitária
deverá ganhar traços ainda mais calamitosos, e essa minoria étnica muçulmana
será ainda mais impactada pela realidade e a segregação que a cerca historicamente.
Distante 60 km de
Bangladesh, a ilha de Bhashan Char recebe atualmente Rohingyas deslocados
Disponível
em: <https://static.dw.com/image/47935072_7.png> acesso em 21 mar. 2021
Em
meio a todo o caos que cerca a situação do povo Rohingya, desde dezembro de
2020 um novo fato chama a atenção, que é o plano elaborado pelo governo bangladês
para diminuir a superlotação dos campos de refugiados e a pressão sobre os
serviços essenciais no país: o governo tem realizado sistematicamente
transferências de milhares de refugiados para a ilha Bhashan Char, localizada
no Golfo de Bengala. Segundo grupos relacionados à defesa dos Direitos Humanos,
a criação de um novo campo de refugiados nessa ilha isolada, com área de pouco
mais de 50km2, não seria uma ação humanitária, mas sim um novo
processo de segregação e exclusão desse povo. Segundo o plano inicial, o
governo daquele país pretende transferir até 100 mil pessoas para essa zona
insular.
De
modo geral, a ideia que melhor exprime a realidade do povo Rohingya é a incerteza,
tanto a respeito de sua possibilidade de retorno ao local de vivência anterior
em Myanmar (o que se torna cada vez mais improvável em decorrência do
recrudescimento do autoritarismo militar naquele país), quanto a respeito de
seu futuro, no que tange à possibilidade de um dia se tornar uma nação com
território próprio (algo difícil, assim como para os Curdos, uma vez que esses
povos não possuem representatividade em organismos internacionais) ou mesmo a
respeito de uma permanência definitiva em Bangladesh (o que se mostra a cada
dia mais complicado, como demonstra a transferência não-voluntária de parte desse
povo para a ilha de Bhashan Char).
Em
suma, o futuro desse grupo só não é mais incerto que o seu próprio presente...
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