segunda-feira, 22 de março de 2021

O POVO ROHINGYA

A MINORIA ÉTNICA ROHINGYA

- Prof. Éder Israel

O povo Rohingya representa na atualidade o maior grupo étnico de deslocados no mundo

Disponível em: <https://www.vaticannews.va/content/dam/vaticannews/agenzie/images/reuters/2019/08/23/03/1566522471965.JPG> acesso em 21 mar. 2021

No estágio contemporâneo da globalização ao mesmo tempo em que criam condições vantajosas para o desenvolvimento econômico das sociedades, através da ampliação dos fluxos e das interações, produz também situações sociais muito negativas, em decorrência de choques culturais e interações conflituosas entre grupos distintos, até pouco tempo “desconectados”. Desse modo, na mesma medida em que os fluxos de mercadorias e informações são ampliados, ocorre também o aumento dos deslocamentos humanos, tanto aqueles considerados espontâneos, como os turistas e trabalhadores, quanto aqueles tidos como forçados, como os deslocados e refugiados. Os Rohingyas se inserem nesse segundo grupo.

A relação intrínseca entre o processo de globalização e o sistema capitalista promove conflitos de interesses econômicos entre os grupos envolvidos nas interações sociais, e quando os objetivos de acumulação financeira e de domínio territorial estratégico se chocam, as disputas podem promover desde instabilidades diplomáticas até mesmo atos de massacres e limpezas étnicas. A questão Rohingya se encaixa perfeitamente nessa segunda perspectiva.

Assim como se observou até a metade do século XX em relação aos Judeus ou se observa na atualidade em relação aos Curdos, os Rohingyas configuram-se hoje como um povo dotado de valores étnicos e culturais, porém desprovido de um território nacional. Desse modo, habitam há muito tempo espaços pertencentes a outros grupos étnicos, e diferentemente do que se observou no passado, essa coexistência no presente tem promovido crescentes choques culturais e disputas de interesses, e automaticamente potencializado disputas étnicas e conflitos sociais. A maior parte dessas disputas envolvendo esse grupo ocorre atualmente no território de Myanmar, onde vive (ou tenta sobreviver) a maioria dessa etnia sem nação.

Em Myanmar o povo Rohingya se concentra no estado de Rakhine, próximo a Bangladesh

Disponível em: <https://static.dw.com/image/40521460_105.png> acesso em 21 mar. 2021

A origem do povo Rohingya ainda é imprecisa. Segundo uma linha de pesquisa eles seriam originários do próprio estado de Rakhine, em Myanmar, ao passo que para uma segunda linha eles seriam oriundos da Birmânia (hoje Bangladesh), tendo migrado no passado para o território mianmarense. O que se sabe de fato é que se trata de um grupo étnico que professa a fé islâmica e que não é reconhecido, enquanto nação, pelo governo desse país, o que coloca os Rohingyas na situação de povo apátrida, uma vez que não possui participação política ou econômica ao espaço em que se inserem, bem como é marginalizado de suas esferas sociais, e essa situação de apatridia agrava ainda mais a já precária situação de vida dessa minoria.

Nos últimos anos os conflitos étnicos de cunho religioso se ampliaram entre a população predominantemente budista de Myanmar e os muçulmanos Rohingyas que habitam no extremo Oeste do país. Porém, além das divergências étnico-religiosas, interesses econômicos e políticos por parte do Estado mianmarense acentuaram as disputas nacionais, ao ponto de diversas instituições supranacionais, e a própria Organização das Nações Unidas – ONU terem considerado esse povo como sendo a minoria étnica mais perseguida no mundo atualmente.

Em termos numéricos a população Rohingya em Mianmar é estimada em cerca de 3 milhões de pessoas, o que significa 5% da população total daquela nação, a qual conta com pelo menos 160 etnias diferentes em seu território, a maioria aceita e acolhida pelo Estado. Essa nação asiática passou na segunda metade do século XX por sucessivos períodos de instabilidade política, golpes militares e regimes ditatoriais, que em comum tiveram sempre as ações veementemente contra o reconhecimento e tolerância aos Rohingyas, sempre marginalizados e excluídos. Porém, naquele período (1950 – 1990) na medida em que havia a perseguição por parte do Estado Nacional, a população minoritária migrava dentro do próprio território mianmarense. Diferentemente do que se passou a observar a partir do início do século XXI, quando a fuga desse povo se deu na direção de outras nações da região.

No período entre 2016 e 2017 observou-se com maior intensidade tanto a perseguição quanto a fuga em massa de populações Rohingyas, principalmente em direção a Bangladesh, país vizinho a Myanmar, onde que a população é de maioria islâmica. Porém, Bangladesh já atravessa severos problemas internos, em decorrência de sua população numerosa e a falta de capitais para investimentos públicos sociais, o que leva sua população nativa a viver em precárias condições de vida e o Estado a ser incapaz de arcar com os elevados custos de manutenção e ajuda humanitária para a população deslocada do país vizinho. Assim, embora em relativa segurança, os refugiados que se deslocam para Bangladesh permanecem em situação de exclusão social, pois muitas vezes não gozam das já mínimas condições oferecidas às populações daquele país.

O campo de refugiados de Cox Bazar, em Bangladesh, é atualmente o maior no mundo

Disponível em: <http://jeepneyjinggoy.com/wp-content/uploads/2019/05/City-like-refugee-camp-photo-by-Kim-Sanggoo.jpg> acesso em 21 mar. 2021

Diante da incapacidade financeira e operacional do Estado bangladês, a ONU, através do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, estabeleceu na cidade de Cox Bazar o campo de refugiados homônimo, que abriga segundo a instituição aproximadamente 1 milhão de pessoas, em sua quase totalidade deslocadas de Myanmar a partir de 2016, quando se intensificaram no país a perseguição dos islâmicos pelos budistas. Mesmo expostas a condições extremamente precárias, principalmente relativas a saneamento básico, as populações refugiadas que habitam os campos encontram-se em relativa seguridade e amparadas pelos termos e dispositivos legais firmados a partir da Convenção de Genebra.

Ao longo dos últimos anos o campo de refugiados tem recebido crescentes somas de Rohingyas, principalmente pelo agravamento das tensões políticas entre os militares e o governo democrático estabelecido em Myanmar, o que amplia a quantidade de indivíduos apátridas que dependem da ajuda humanitária, custeada pela ONU e por organismos internacionais, bem como por doações de todo o mundo. Porém, trata-se apenas de uma solução temporária e paliativa, que não resolve de fato o problema dessa minoria étnica desprovida de um espaço nacional. Uma medida que poderia surtir resultado mais efetivo seria a delimitação e o estabelecimento de “um país Rohingya”, porém essa proposta esbarra em uma série de entraves diplomático, posto que alguma outra nação deveria abrir mão de uma parte de seu território para que essa nova nação fosse criada. E, assim como acontece com a questão curda no Oriente Médio, há dificuldades colossais para que tal medida seja efetivada.

A situação dessa minoria étnica passou por severo agravamento a partir de 2019, por duas variáveis diferentes que impactaram de maneiras igualmente devastadoras sobre esse povo: Primeiramente a pandemia do novo Coronavírus, que atingiu de modo alarmante o campo de Cox Bazar, onde as condições de saneamento são extremamente precárias e o distanciamento social se faz quase impossível, em decorrência da enorme população habitante e da insalubridade das moradias. E em segundo lugar, um golpe de Estado realizado pelos militares em Myanmar, que derrubou em fevereiro de 2021 o governo da Liga Nacional pela Democracia – LND, sob a liderança de Aung San Suu Kyi. Ambos os eventos tornaram ainda mais precária e ameaçadora a situação desse povo.

No caso do surto do Coronavírus dentro do campo de refugiados, onde vive cerca de 1 milhão de pessoas em sua maioria crianças, a doença se espalhou assintomática, rápida e silenciosamente, atingindo números elevados de infecções, segundo estimativas extraoficiais dos organismos internacionais, posto que dificilmente existam dados totalmente oficiais dadas as dificuldades clínicas de realização de testes, e o intenso fluxo diário de entrada de novos refugiados, provenientes das nações circunvizinhas. Assim como as condições de testagens são insuficientes para a população do campo de refugiados, as instalações médicas de tratamento, como leitos de UTI e equipamentos de ventilação forçada são certamente inadequadas frente a um possível (e possivelmente inevitável) surto da doença. O que será certamente uma demanda a mais para os já sobrecarregados voluntários que operam essa estrutura humanitária.

No caso do golpe de Estado ocorrido em Myanmar no início de 2021 a perseguição aos Rohingyas, que já existia de maneira evidente sob o governo da LND, tende a se tornar ainda mais implacável, em decorrência do autoritarismo político a ser empregado pelos militares que tomaram o poder, os quais justificarão suas políticas de segregação e combate às minorias étnicas com um discurso de suposta defesa do nacionalismo. Desse modo certamente haverá ainda mais êxodo desse povo, principalmente em direção ao já superlotado campo de refugiados em Bangladesh. Em resumo, a situação que já é notadamente de tragédia humanitária deverá ganhar traços ainda mais calamitosos, e essa minoria étnica muçulmana será ainda mais impactada pela realidade e a segregação que a cerca historicamente.

Distante 60 km de Bangladesh, a ilha de Bhashan Char recebe atualmente Rohingyas deslocados

Disponível em: <https://static.dw.com/image/47935072_7.png> acesso em 21 mar. 2021

Em meio a todo o caos que cerca a situação do povo Rohingya, desde dezembro de 2020 um novo fato chama a atenção, que é o plano elaborado pelo governo bangladês para diminuir a superlotação dos campos de refugiados e a pressão sobre os serviços essenciais no país: o governo tem realizado sistematicamente transferências de milhares de refugiados para a ilha Bhashan Char, localizada no Golfo de Bengala. Segundo grupos relacionados à defesa dos Direitos Humanos, a criação de um novo campo de refugiados nessa ilha isolada, com área de pouco mais de 50km2, não seria uma ação humanitária, mas sim um novo processo de segregação e exclusão desse povo. Segundo o plano inicial, o governo daquele país pretende transferir até 100 mil pessoas para essa zona insular.

De modo geral, a ideia que melhor exprime a realidade do povo Rohingya é a incerteza, tanto a respeito de sua possibilidade de retorno ao local de vivência anterior em Myanmar (o que se torna cada vez mais improvável em decorrência do recrudescimento do autoritarismo militar naquele país), quanto a respeito de seu futuro, no que tange à possibilidade de um dia se tornar uma nação com território próprio (algo difícil, assim como para os Curdos, uma vez que esses povos não possuem representatividade em organismos internacionais) ou mesmo a respeito de uma permanência definitiva em Bangladesh (o que se mostra a cada dia mais complicado, como demonstra a transferência não-voluntária de parte desse povo para a ilha de Bhashan Char).

Em suma, o futuro desse grupo só não é mais incerto que o seu próprio presente...

 

 

 

 

                                                                                                                                                             

 

 

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