O BLOQUEIO DO CANAL DE SUEZ
- Prof. Éder Israel
O navio Ever Given
encalhado diagonalmente no Canal de Suez, impedindo o fluxo marítimo
Disponível
em: <https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24943155-7cb-29b/FT1086A/xn1.jpg.pagespeed.ic.i9n0L30tkj.jpg>
acesso em 27 mar. 2021
No
dia 23 de março de 2021 um porta-contêineres operado pela empresa taiwanesa
Evergreen Marine ficou atravessado em uma das principais rotas comerciais do
mundo contemporâneo, bloqueando completamente o tráfego de navios que
normalmente circulam por essa ligação artificial construída na segunda metade
do século XIX, que hoje rende cifras bilionárias ao governo egípcio, detentor e
operador dessa rota estratégica, que liga, dentre outros, os grandes centros industriais
do sudeste da Ásia aos vastos mercados consumidores da Europa e América do
Norte. Mas para se entender a importância dessa via comercial e a dimensão dos
prejuízos causados por esse acontecimento, faz-se necessária uma análise
histórica da região.
O
Canal de Suez, como se conhece hoje, foi construído ao longo de uma década,
entre 1859 e 1869, fruto de uma “parceria” entre Egito e França, tendo sido
essas duas nações as primeiras proprietárias e operadoras dessa rota comercial,
que corta o país africano ligando o mar Vermelho ao mar Mediterrâneo. Porém, diferentemente
dos franceses, os egípcios não dispunham de capitais para a execução das obras,
o que levou o país do Norte africano a contrair vultosos empréstimos
estrangeiros, que geraram uma elevada dívida externa à nação.
Em
decorrência dessa dívida externa em 1875 o governo egípcio vendeu sua parte do
canal para o governo inglês, que passou a partilhar com a França o controle
sobre a rota comercial. Assim, embora o canal se localizasse em territórios do
Egito, seu controle e os lucros por ele gerados eram de propriedade de nações
europeias, e assim permaneceu até a Segunda Guerra Mundial. Ainda no ano de
1888 foi assinada a Convenção de Constantinopla, que versa a respeito da
utilização estratégica do Canal de Suez. Segundo o documento a rota deve
permanecer aberta e irrestrita à navegação comercial em tempos de paz, ou
militar em tempos de guerra, não sendo permitido à nação administradora, seja
ela qual for, impedir o livre fluxo das embarcações, desde que respeitadas as
questões tributárias.
Manchete de jornal de
1956, retratando a posição do rpresidente Abdel Nasser durante a Guerra do Suez
Disponível
em: <https://www.socialist.net/images/new-stories/History/Suez1956/EveningStandard1956.jpg>
acesso em 27 mar. 2021
Após
a Segunda Guerra Mundial, e principalmente depois da criação do Estado de
Israel, houve grandes mudanças na geopolítica do Oriente Médio, e o Canal de
Suez não passou à margem dessas transformações. O enfraquecimento político e
econômico de França e Inglaterra, aliado à ascensão geopolítica de Estados
Unidos e União Soviética promoveram um novo enfrentamento global em busca de
áreas de influência ideológica para os sistemas representados por cada uma das
duas novas potências na dinâmica da Guerra Fria. Ao mesmo tempo em que se
observavam essas mudanças no poderio hegemônico mundial, o então presidente do
Egito, Gamal Abdel Nasser, inicia um movimento político de cunho populista e
nacionalista, que reacende o ideário do Pan Arabismo, adormecido durante a
Segunda Guerra.
O
Pan Arabismo de Nasser se baseava em dois preceitos primordiais: primeiramente
buscar a retomada do controle do Canal de Suez pelo Estado egípcio, se valendo
da diminuição do poderio geopolítico das potências europeias tradicionais, a
saber, França e Inglaterra; e em segundo lugar combater a criação de um Estado
Judeu nos territórios palestinos, até então ocupados pelos árabes, que foram
dali retirados pela Organização das Nações Unidas - ONU a partir de 1947. Enquanto
a figura do presidente do Egito ia se tornando mais forte, a influência regional
do país crescia atrelada ao apoio, ainda que velado, da União Soviética. Assim,
o país árabe estabelece uma mobilização militar em 1956, na qual pretendia além
de nacionalizar a rota marítima estratégica, provocar o isolamento econômico e
comercial de Israel. Ocorre a partir dessa combinação de fatores a Guerra do
Suez. Ao término de uma semana de embates diplomáticos e a formação de uma
coalizão militar entre França, Inglaterra e Israel, a ONU (leia-se EUA
pressionados pela URSS) declara legítima a reivindicação de Abdel Nasser e o
controle do canal passa ao governo do Egito, sob a condição de não bloquear a
navegação de/para o país judeu.
Com
crescimento da economia estadunidense após a Segunda Guerra Mundial a nação
americana ampliou grandemente sua demanda por petróleo, em sua maioria
importado de nações do Oriente Médio, e a rota através do Canal de Suez reduz
drasticamente os custos de frete e o tempo para que esse estratégico recurso
energético chegue ao mercado da potência ocidental. Ao mesmo tempo, o
fortalecimento da União Europeia e a retomada do crescimento econômico e
produtivo de suas nações após a guerra ampliaram os mercados consumidores
regionais, fazendo da rota mediterrânica uma importante via de circulação das
importações e exportações. Soma-se a esses processos a instalação de indústrias
multinacionais no Sudeste da Ásia, inicialmente no Japão e nos Tigres Asiáticos
e posteriormente na China, que deslocou grande parcela do setor produtivo
global para aquela região, e a ligação através do Egito se tornou ainda mais
estratégica.
Sem a construção do
Canal de Suez, a ligação comercial entre Ásia e Europa ainda seria feita pela
costa africana
Disponível
em: <https://img.r7.com/images/info-desvio-de-rota-suez-boa-esperanca-27032021103829062>
acesso em 28 mar. 2021
Atualmente
o Canal de Suez é responsável por 12% do tráfego comercial do mundo. Diariamente
pelo menos 90 gigantescos navios tanques, graneleiros e porta-contêineres percorrem
seus 193 quilômetros de extensão, em uma viagem que dura entre 10 e 15 horas,
transitando entre os mares Mediterrâneo e Vermelho, em ambos os sentidos. Antes
de sua construção esse deslocamento era realizado através da rota do Cabo da
Boa Esperança, que contorna o continente africano, em uma viagem que além da
duração de aproximadamente 2 semanas a mais, agrega o severo risco de ataques
piratas ao longo da costa africana, o que elevaria de maneira substancial os
gastos com combustível e principalmente com as agências seguradoras das cargas
e dos navios. No final da cadeia esse custo seria repassado ao consumidor,
elevando sobremaneira o valor das mercadorias nos mercados.
Por
conta dessas desvantagens econômicas e estratégicas em usar a antiga rota
africana um grande número de embarcações optaram por aguardar o desbloqueio de
canal, permanecendo ancoradas nas duas extremidades da rota. No domingo, 5 dias
após o encalhe do Ever Given, haviam pelo menos 430 navios à espera da
liberação do fluxo, e com as perspectivas de ainda serem necessários mais dias
para a retirada da embarcação a fila tendia a aumentar de maneira
significativa. Por tratar-se de um fluxo constante, os prejuízos desse
incidente também são estimados em cifras exorbitantes, que atingem, segundo a Lloyd’s List Intelligence (instituição
especializada em informações sobre fluxos marítimos globais), cerca de 400
milhões de dólares a cada hora, totalizando pelo menos 9,6 bilhões de dólares
ao dia.
Em
um momento em que a economia começa a dar os primeiros passos de recuperação
após 1 ano de pandemia, nas nações mais desenvolvidas, onde a vacinação acontece
de maneira mais rápida, o comércio inicia a reabertura gradual das atividades,
porém o impedimento do fluxo pelo Canal de Suez pode reduzir o abastecimento
dessas nações, principalmente de produtos industriais produzidos pelas
multinacionais alocadas na China. Outro setor que já sente os primeiros
impactos é o dos combustíveis, pois o escoamento de grande parte do petróleo
produzido no Golfo Pérsico atravessa essa rota, e no caso dessa commodity o risco de utilizar a rota
alternativa pelo Cabo da Boa Esperança se mostra ainda mais severo, pois recentemente
grandes petroleiros já foram alvos de piratas africanos e as companhias de
seguro possuem fortes restrições em fazer contratos para esse tipo de carga
nessa região. Isso aumentaria sobremaneira o preço desse recurso e dificultaria
ainda mais a recuperação econômica atual.
Maquinas trabalham na
tentativa de abrir espaço para o navio ser manobrado e retirado do canal
Disponível
em: <https://gcaptain.com/wp-content/uploads/2021/03/2021-03-28T100403Z_1811002230_RC2AKM9DC1BX_RTRMADP_3_EGYPT-SUEZCANAL-SHIP.jpg>
acesso em 28 mar. 2021
O
grande problema foi com relação à operação de retirada do navio, e
principalmente o tempo que se empregou n isso, posto que os prejuízos somavam-se
aos milhões de dólares a cada hora. Em tese a responsabilidade por essa
operação recairia sobre a empresa taiwanesa Evergreen
Marine, que opera a embarcação,
podendo ser compartilhada com a empresa japonesa Shoei Kisen Kaisha, proprietária legal do navio.
Porém, um dos maiores interessados no imediato desbloqueio da navegação local era
o governo do Egito, país que fatura bilhões de dólares anualmente de tarifas e tributos
pelo uso da via pelos cargueiros internacionais. Tanto que o presidente
egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, ainda durante as tentativas de fazer o navio
voltar a flutuar, já planejava uma segunda alternativa para a operação, que
consistiria em descarregar o navio, ou parte dos quase 20 mil contêineres que
ele transportava, para aliviar seu peso e manobrá-lo no canal.
O
próprio governo dos Estados Unidos, assim como governos europeus chegaram a
oferecer ajuda tecnológica ao Egito para solucionar o mais breve o problema,
uma vez que detinham grandes interesses econômicos nos quase 500 navios que se encontravam
enfileirados nas duas extremidades do canal. Em termos práticos a primeira e
mais séria urgência era de fato a retirada do navio da via marítima; investigações
a respeito das causas do acidente certamente serão investigadas posteriormente,
principalmente pelas cifras bilionárias de indenizações que as seguradoras e
empresas responsáveis pela embarcação terão que pagar, além dos já
elevadíssimos custos do desbloqueio. Até o momento, após a liberação do canal
na manhã do dia 23 de março, a principal hipótese apontada como causa, pela
própria tripulação foi a ocorrência de uma tempestade de areia sobre o deserto,
e um forte vento lateral que empurrou o navio na direção do barranco,
colocando-o atravessado nos 300 metros de largura da hidrovia.
O navio Ever Given é rebocado
após ser desencalhado na manhã do dia 29 de março de 2021
Disponível
em: <https://uploads.metropoles.com/wp-content/uploads/2021/03/24120117/cargueiro-Ever-Given.jpeg>
acesso em 29 mar. 2021
Mas,
certamente outras possibilidades serão minunciosamente investigadas após a
retomada da normalidade dessa que hoje é uma das mais importantes vias de
circulação dos mercados globalizados, e que mostrou o quão frágil é o sistema
capitalista integrado, onde um acidente no Norte da África traz impacto para
toda a economia, desde as nações mais desenvolvidas que reduzem o acesso às commodities importadas, às nações menos
desenvolvidas, que reduzem os ganhos com essas mesmas commodities exportadas.
■
Muito bom artigo. Realmente há parcela de culpa entre muitos.
ResponderExcluir