A DOUTRINA DA PROSPERIDADE
COMUM NA CHINA
Prof. Éder Israel
O governo chinês afirma
que hoje um grupo minoritário acumula para si os capitais que poderiam melhorar
a vida da população do país como um todo
Disponível
em: <https://www.kinea.com.br/blog/o-planejador-central-e-a-prosperidade-comum-%E5%85%B1%E5%90%8C%E5%AF%8C%E8%A3%95-o-que-esta-acontecendo-na-china-parte-ii/>
acesso em 03 Nov. 2021
A
partir do último quarto do século XX a China passou a apresentar um ritmo de
crescimento econômico muito superior à média mundial, principalmente em
decorrência de reformas e modernizações implementadas sob o comando de Deng
Xiao Ping, que assumiu o poder do país após a morte de Mao Tse Tung em 1976.
Embora membro do Partido Comunista Chinês - PCCh, Xiao Ping divergia da visão
econômica de seu antecessor, principalmente da irredutibilidade de Mao em
relação ao modelo socialista. Naquele período a resistência do então líder
chinês em continuar com um modelo sistêmico que já apresentava crises na
própria União Soviética, de onde se originara, trouxe para a China o atraso
econômico acompanhado pelo isolamento político, que determinou ao país um
crescimento muito inferior ao seu real potencial.
A
estratégia adotada por Deng Xiao Ping deu origem ao Socialismo de Mercado, um
sistema híbrido onde se mesclavam as bases políticas autoritárias do Socialismo
com a abertura da economia aos investimentos externos do Capitalismo. Nesse
modelo, que produziu no país asiático uma Perestroika desacompanhada de sua
respectiva Glasnost, houve uma rápida modernização do quadro econômico através
da industrialização concomitante à urbanização, ambas tendo ocorrido de modo
absolutamente acelerado, o que obviamente deu origem a discrepâncias regionais
muito visíveis, principalmente no âmbito da qualidade de vida da população.
Com
a abertura da economia para os investimentos estrangeiros, materializados pela
chegada de multinacionais atraídas por vultosas vantagens locacionais, o mundo
observou o Produto Interno Bruto - PIB da China crescer dois dígitos
anualmente, enquanto as demais nações tentavam, a duras penas, se reinserir no
cenário global pós Guerra Fria. Quanto mais o país asiático crescia mais
investimentos ele atraía e seu PIB ia se expandindo irrestritamente às custas
dos capitais externos. Porém, politicamente o PCCh se mantinha irredutível no
pleno controle da nação, e na verdade era o grande administrador dessa
modernização seletiva, criando as regras para os investidores externos e
estabelecendo os locais onde eles poderiam aportar seus capitais em busca de
rendimentos.
Vista noturna da cidade de
Xangai, uma das metrópoles mais modernas da China Socialista de Mercado
Disponível
em: <https://www.melhoresdestinos.com.br/promocao-passagens-xangai.html>
acesso em 03 Nov. 2021
Foi
graças ao PCCh que foram criadas no litoral chinês as Zonas Econômicas
Especiais - ZEEs, que são enclaves capitalistas abertos para a instalação de
filiais de empresas multinacionais em busca de mão de obra numerosa, barata e
disciplinada, além das concessões incomparáveis que o Estado centralizador
oferece, tais como impostos muito reduzidos e leis ambientais muito mais
flexíveis e perniciosas que aquelas observadas nas nações ocidentais. Ainda na
esteira de vantagens locacionais vale destacar o controle social exercido pelo
governo, principalmente em relação ao movimento sindical, que se vê impedido de
pleitear benefícios e vantagens para os trabalhadores da nação.
Dessa
maneira o país entrou em um ciclo de acumulação financeira (elevação do PIB)
que não foi acompanhada diretamente pela melhoria nas condições de vida de sua
população (elevação do IDH) e nem pela diminuição das desigualdades
socioeconômicas internas (redução do Coeficiente de Gini). Em resumo se criou
um país muito rico, habitado por uma população muito pobre. Para uma nação que
almeja o posto de potência hegemônica no século XXI essas discrepâncias atestam
uma ineficiência na gestão estatal e principalmente demonstra que o Socialismo
de Mercado apresenta limitações muito fortes para que seu principal objetivo,
de ampliação do poderio geopolítico da China, seja um dia concretizado. É
necessária a realização de correções e ajustes na sociedade e na administração
política.
Nesse
início de século XXI o PCCh já dá mostras claras de que pretende mudar o modelo
de gestão do país e ampliar a participação chinesa na economia global, sendo
prova disso o início dos vultosos investimentos realizados em obras estruturais
relacionadas à chamada Nova Rota da Seda, em vários países do mundo.
Internamente o governo também realiza mudanças importantes, como a abolição
parcial da histórica política do filho único, que marcava o quão forte era o
controle do partido sobre todos os aspectos da vida na nação. Porém, em termos verdadeiramente
políticos pouco se avança, mantendo um Estado centralizador de todo o poder e
irredutível na manutenção do pleno controle sobre tudo e sobre todos.
A
proposição de uma nova política estatal, batizada de Doutrina da Prosperidade
Comum, por parte do presidente XI Jinping, traz em seu âmbito o discurso de que
é necessária e urgente a redução das disparidades socioeconômicas internas do
país, e que não basta à China ser a nação mais rica do mundo se sua própria
população não usufrui plenamente dessa vasta riqueza ali gerada. Mas por trás
desse discurso muito agradável aos olhos desatentos tem-se a dura realidade de
que ele materializa e formaliza a intenção do PCCh em ampliar ainda mais o seu
poder e a sua influência sobre a sociedade chinesa. Em suma, a proposta se
baseia na premissa de que os investimentos privados do país devam ser direcionados
para dentro da própria nação (e onde o governo julga necessário) e não onde o
investidor vislumbre a maior rentabilidade.
Basicamente
a ideia resumida é de que muitas empresas privadas chinesas, que se tornaram
gigantes globais a partir das benesses do Socialismo de Mercado, voltassem
parcelas substanciais de seus capitais de giro para beneficiar à própria
população nacional, e não em continuar suprindo, de modo prioritário, às
demandas dos mercados globais. Ou seja, o presidente chinês precisa fazer
investimentos no país e pretende usar para isso os capitais “voluntariamente
cedidos” pelos grupos empresariais da nação. Internamente a proposta parece
muito benéfica para a China, mas externamente ela pode (e deve) gerar grandes
mudanças a nível global, posto que hoje grande parte daquilo que é consumido no
mundo provém exatamente daquilo que os chineses produzem e enviam para fora,
por não estarem “focados” nos seus próprios mercados e nem em sua própria
população.
Grande
parte da proposta geral do Partido Comunista Chinês se encontra baseada no
discurso de ampliação e fortalecimento da classe média nacional, em um
movimento enxergado pelo mundo como sendo o país asiático querendo se voltar
para si mesmo e diminuir as dependências em relação aos mercados e às variações
econômicas globais. A estratégia para os investimentos na própria população
deriva da mescla entre o poder do regime que governa a nação, e que não se
exime de pressionar sua camada social mais abastada, e do próprio nacionalismo
crescente no país, principalmente após as reformas estruturais trazidas pelo
Socialismo de Mercado. Ou seja, quando a simples empatia da classe empresarial
pelo governo que levou a China ao atual estágio de ampliação do seu PIB não é
suficiente, o governo apela para os valores éticos e morais de uma sociedade com
profundas raízes no Confucionismo.
Na China atual o elevado
padrão de muitas construções contrasta com a miséria nas precárias habitações de
pessoas que vivem à margem da sociedade
Disponível
em: <https://www.chinalinktrading.com/blog/fim-da-pobreza-na-china/>
acesso em 03 Nov. 2021
Além
da proposta de taxação sobre as grandes fortunas internas o PCCh propõe ainda
vultosas “doações” das classes mais altas e dos grandes grupos empresariais
para os programas estabelecidos pelo Estado, o que daria um novo fôlego para a
retomada do crescimento econômico da China após a estabilização do quadro
pandêmico atual; e mais do que isso, reforçaria ainda mais o poder
intervencionista do governo e o seu controle sobre a economia do país. Porém,
diferentemente do que ocorreu no passado, quando o Estado criou segundo seus
interesses as ZEEs para atrair investimentos externos, dessa vez as ações são
voltadas para os investimentos internos do país, e na tentativa de fazer com que
a China deixe de ser um país apenas rico e se torne de fato uma nação
desenvolvida e possa enfim colher os benefícios de uma posição hegemônica no
cenário global contemporâneo.
Um
dos pontos enfatizados pelo discurso de Xi Jinping, de defesa da tal Prosperidade
Comum, é a necessidade de que o processo de enriquecimento dos mais pobres não
seja conseguido através de um simples programa de assistencialismo ou de
transferência direta de renda, mas sim que (em suas próprias palavras) “os
chineses sejam incentivados a buscar o enriquecimento a partir do próprio
trabalho duro”, bem como do apoio daqueles que já alcançaram o enriquecimento
anteriormente (leia-se classe empresarial). Segundo analistas ocidentais o que
o governo busca é o controle dos capitais privados, retrocedendo em um dos
avanços mais marcantes do Socialismo de Mercado, que foi a permissão para a
propriedade privada no país, ou como afirmam setores da mídia mundial, “a
retomada de um modelo mais próximo ao Socialismo chinês da Era Mao Tse Tung”.
De
fato, é pouco provável que a atual manobra chinesa esteja relacionada a um
retorno estrutural ao Socialismo adotado durante o período inicial da Guerra
Fria, pois isso jogaria por terra em pouco tempo todos os avanços econômicos
alcançados pelo Socialismo de Mercado nas últimas décadas, e o governo do país
sabe bem disso. O mais provável é que de fato o PCCh tenha entendido que o acelerado
crescimento econômico da nação, desacompanhado de uma distribuição mais
coerente das riquezas internamente pode desencadear uma crescente onda de
descontamento popular, naquela que é a maior população do mundo, e frente a
essa possibilidade talvez nem toda repressão estatal seria capaz de controlar um
crescente questionamento interno acerca da legitimidade do partido.
Geopoliticamente a necessidade de uso da força pelo Estado contra a sua própria
população soaria extremamente mal para o governo chinês; portanto, convém (nesse
caso) o entendimento de que é necessário fazer com que os chineses vivam melhor,
para que eles continuem subservientes ao regime.
O
que parece ser mais claro a respeito dessa guinada na gestão do país é que o
governo autoritário se deu conta que o enriquecimento da elite econômica nacional
acabou por fazer com que uma camada pequena (mas poderosa) da nação passasse a
acreditar que não dependia mais do Estado, e mais do que isso, que tinha poder
para fazer o que bem desejasse, sem dever a ele nenhuma satisfação ou obediência.
Desse modo, muitos empresários chineses optaram, de maneira crescente nos
últimos anos, em investir seus capitais em outras nações, mais ligadas à
economia de mercado neoliberal, do que ao keynesianismo disfarçado chinês. Isso
tem trazido um grave processo de evasão de divisas, e muitas vezes o dinheiro
que essa elite conseguiu às custas de sua associação ao governo, tem sido
aportado e outras nações, gerando condições de emprego e renda para outras
populações que não a chinesa. O regime do país acha que é hora de mostrar
novamente quem está no controle...
O presidente Xi Jinping
busca entrar para a história da China como o líder que conduziu a nação à
hegemonia, sem abrir mão de todas as bases do antigo regime
Disponível
em: <https://www.linkedin.com/pulse/100-years-ccp-xi-jinping-consolidates-power-govt-party-talukdar>
acesso em 03 Nov. 2021
Portanto,
por trás dessa suposta Prosperidade Comum existe materialmente o intervencionismo
estatal, que em períodos recentes esteve menos visível, porém nunca inexistente
na China. Seria o PCCh fazendo questão de lembrar ao empresariado do país de
onde veio o dinheiro ou as condições para que ele pudesse alcançar a acumulação
que originou sua fortuna atual. De uma só vez o partido consegue duas coisas
importantes: em primeiro lugar reforça sua posição de única liderança da
economia nacional e em segundo passa a ideia de que está preocupado com as
condições de vida da sua população, e inegavelmente isso ajuda no controle
social, que é necessário a qualquer regime que queira se manter no poder de
modo inquestionável.
O
mundo assiste com tamanha apreensão essa mudança no modo como a China é
administrada por conta do peso que essa economia já assumiu na geopolítica
global. Há décadas o mundo teme o momento em que “os chineses deixarão de ser
apenas produtores e começarão a ser também consumidores”, posto que é um
mercado absurdamente amplo e que demandaria uma quantidade igualmente
gigantesca de recursos para suprir às suas demandas, e a chance de “faltar
recursos e mercadorias para o restante do mundo” se mostra cada vez mais real.
Ao
incentivar a expansão da classe média através dessa nova proposta interna, a
nação asiática passa ao mundo exatamente esse recado, de que os chineses deverão
ter mais dinheiro no futuro, e automaticamente consumirão mais. Resta saber se
o mundo está preparado para um momento em que não sobrará mais tantos produtos
da China para as outras nações consumirem e se os fornecedores globais
conseguirão suprir a demanda chinesa sem comprometer a oferta para os mercados
consumidores tradicionais. Ao futuro caberá as respostas.
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